Passados mais de 10 dias da votação na Câmara do Deputados que aprovou o processo de admissibilidade do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), muitos políticos ainda buscam justificativas para o fato. A senadora Regina Sousa (PT), em discurso no Senado, apontou o deputado federal Heráclito Fortes (PSB) como um dos conspiradores, do que ela chama de golpe.
A senadora citou a matéria “G-8 do impeachment teve reuniões durante um ano”, publicada no site do jornal O Estado de São Paulo, em que Heráclito Fortes relata que durante os últimos doze meses, um grupo de parlamentares e outras autoridades reuniram-se semanalmente, no Lago Sul de Brasília, para discutir a melhor forma de derrubar a presidenta da República Dilma Rousseff.
Segundo Regina Sousa, os relatos feitos por Fortes mostram cabalmente que houve uma conspiração golpista que trabalhou cuidadosamente, desde a posse, para derrubar o governo legitimamente eleito. “Como não chamar de golpe algo que foi cuidadosamente gestado e articulado durante um ano na casa do deputado Heráclito Fortes. Os golpistas começaram a estudar como fazer o impeachment quando a presidenta mal tinha tomado posse”, disse.
A reportagem citada por Regina Sousa mostra que as reuniões semanais realizadas na casa de Heráclito Fortes contavam com um comando de oito conspiradores, entre os quais, além do próprio anfitrião, estavam o ex-presidente do STF, Nelson Jobim, o ex-Presidente do Banco Central Armínio Fraga e o Senador José Serra. O vice-presidente da República também era frequentador do lugar. “A palavra conspiração não sou eu que estou dizendo. A reportagem diz que quem a usou foi o próprio Heráclito. E conspiração, neste caso, é golpe”, concluiu.
Durante um ano, entre abril do ano passado e este abril, dito o mais cruel dos meses, o deputado federal Heráclito Fortes (PSB-PI) reuniu, em sua casa do Lago Sul, à média de dois jantares por mês, um grupo de parlamentares da oposição, experientes e/ou influentes, para discutir a crise político-econômica e, principalmente, o impeachment da presidente Dilma Rousseff.
O convidado mais ilustre, por três ocasiões, foi o ex-ministro e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim. Sua contribuição, tão discreta quanto fundamental, foi aprofundar a compreensão técnico-jurídica das possibilidades do impeachment – e sua formatação política em diversos cenários.
Outro convidado, na área econômica, por duas vezes, foi o economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central no governo Fernando Henrique Cardoso. O senador e economista José Serra (PSDB-SP), compareceu com frequência.
“Agora eu já posso contar”, disse Heráclito Fortes ao Estado no burburinho do café anexo ao plenário da Câmara dos Deputados. Muitas vezes deputado – desde 1982, pela Arena, e depois pelo PMDB, onde, deputado constituinte, ganhou a confiança de Ulysses Guimarães –, uma vez prefeito de Teresina e outra senador, Heráclito não conseguiu se reeleger em 2011. Administrou a paulada – que atribuiu parcialmente ao governo petista – e voltou, em 2014, como o mais improvável socialista que se possa imaginar.
Não viu muita gente de confiança para jogar conversa fora, como nos velhos tempos. Angustiado com isso, fez um primeiro ‘jantar-laboratório’ na casa do Lago Sul. Era 15 de abril do ano passado. De lá para cá, convidou, quase quinzenalmente, oposicionistas que sabem mamar em onça, como ele próprio, ou que ainda estão aprendendo, mas já dão aula, entre eles Benito Gama (PTB-BA), José Carlos Aleluia (DEM-BA), Raul Jungmann (PPS-PE), Rodrigo Maia (DEM-RJ), senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), Pauderney Avelino (DEM-AM), Mendonça Filho (DEM-PE), Júlio Lopes (PP-RJ), Danilo Forte (PSB-CE), Carlos Marun (PMDB-MS), Fernando Bezerra Coelho Filho (PSB-PE), Tadeu Alencar (PSB-PE). Na estimativa de Heráclito, 80 parlamentares participaram desses encontros.
Dezoito convidados ouviram o ex-ministro Nelson Jobim, pela primeira vez, no primeiro mês da articulação. “Nós precisávamos ter uma noção técnica de um processo de impeachment. E ele foi perfeito. Mostrou os três lados da moeda”, lembrou o deputado piauiense.
G de geriátricos. Além dos jantares – informais, para a média de 20 convidados, entre os fixos e os variáveis –, havia um almoço, quase semanal, com um grupo mais restrito: Heráclito Fortes, Jarbas Vasconcelos, José Carlos Aleluia, Raul Jungmann, Marcos Pestana (PSDB-MG), Tadeu Alencar, Rubens Bueno (PPS-PR) e Mendonça Filho. Era o “cérebro da conspiração” – para usar uma imagem que os mais velhos, os quatro primeiros, conhecem bem. Entre eles próprios, com a intimidade que as amizades permitem, batizaram-se de “G-8”. O G, no caso, significando “geriátrico” – uma homenagem aos setentões, ou quase. Heráclito, por exemplo, ainda tem 65.
Reuniam-se no restaurante argentino 348 – e rachavam a conta. “Não houve tema importante da crise política que não passasse por esse grupo, o do almoço e o dos jantares”, disse o deputado Raul Jungmann. “Foi um estado-maior informal do impeachment, reuniões onde se preparava o cardápio do que iria ser servido”.
Sorriso amarelo. No animado e barulhento café da Câmara, Heráclito é cumprimentado a cada cinco minutos. Um dos que chegam, com um tablet na mão, é o deputado petista Ságuas Moraes (MT). “Você esqueceu no plenário – e eu vim devolver”, disse. Heráclito agradeceu, e brincou: “Nós queremos dar ao PT, no novo governo, o Ministério da Ação de Graças. O problema é que vocês não aceitam nada de graça”. Moraes sorriu amarelo – e bateu em retirada, antes que viesse a próxima. Ele mesmo nunca foi convidado para os jantares. Mas outros deputados petistas sim – como Arlindo Chinaglia, Henrique Fontana e Alexandre Molon (quando ainda no PT). “Sentimos que eles não tinham interlocução com o Planalto, porque a Dilma não recebia ninguém. E o Mercadante, quando falava com um, era só pra dar carão”. Mesmo com alguns de seus deputados participando de uma ou outra das reuniões, ninguém do governo chamou ninguém da oposição para conversar. Durante um ano.
Os encontros foram importantes, avalia Heráclito, “porque arrumava a cabeça, e cada um saía com orientação do que falar”. Mais um gole de água, e complementou: “A pior coisa do mundo é um plenário desarrumado de cabeça. Nós éramos minoritários, não tínhamos condições nenhuma de criar crise para o governo, mas tínhamos de marcar posição, e foi isso que nós fizemos”. Ele lembrou de outros convidados: Roberto Freire (PPS-SP), Bruna Furlan (PSDB-SP), Jutahy Junior (PSDB-BA), Antônio Imbassahy (PSDB-BA), Bruno Araújo (PSDB-PE), Felipe Maia (DEM-RN).
Na sexta passada, quando o acesso dos jornalistas ao plenário ficou muito restrito, o deputado Júlio Lopes (PP-RJ) fez a gentileza de comparecer a um outro café da Câmara, o que fica no Salão Verde (por conta do carpete desbotado). Tem água e café de graça para qualquer um que queira. Num dia comum, as dez máquinas produzem 600 litros de café, gentilmente servidos, no balcão, por cinco garçons. Lopes é a própria elegância – e traz, na lapela do terno bem cortado, a fita verde-amarela que tem simbolizado a oposição.
“O Heráclito montou um núcleo de inteligência, com pessoas que têm um comprometimento maior, uma reflexão mais aprofundada”, disse, modestamente excluindo-se. “Lá, nos jantares, a gente discutia dentro de uma contextualização real dos fatos, sem a necessidade de estar adjetivando tudo.” Como ninguém é de ferro, Heráclito era generoso nos comes e bebes que mandava servir. “Posso garantir que não há comida melhor em Brasília, uma culinária nordestina perfeita, sempre regada dos melhores vinhos de uma adega extraordinária”.
Lopes ilustrou os motivos de Heráclito para criar o ‘núcleo de inteligência’ com uma história já algo conhecida, mas sempre saborosa: o dia em que o ministro da Articulação Política, o deputado petista Pepe Vargas, foi à Câmara dos Deputados e não reconheceu justo Heráclito Fortes, que muito antes de seu homônimo grego já sabia que não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio, ainda mais naquele estuário. “É como ir a Disneylândia e não reconhecer o Mickey. Ir a Roma e não reconhecer o Papa. Já dizia tudo sobre como esse governo trata a política”, disse o parlamentar do Rio de Janeiro.
Oráculo. Lopes também ficou bem impressionado com as contribuições de Nelson Jobim: “Suas exposições nos permitiram ver com clareza como os fatos se dariam, sob suas diferentes perspectivas”.
Danilo Forte, do PSB do Ceará – que chama o núcleo de “ágora”, a praça grega das assembleias populares – troca em miúdos a contribuição do ex-ministro Nelson Jobim: “Ele nos deu conforto nos momentos em que decisões do Supremo nos desanimaram. Disse que era necessário criar um ambiente político dentro do Congresso, para poder viabilizar uma votação do impeachment, e que também era necessário apresentar um projeto de alternância de poder”.
Carlos Marun, do PMDB do Mato Grosso do Sul, está no primeiro mandato. Defensor vigoroso do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, já fala grosso como linha de frente da oposição mais empedernida. Foi convidado para uma dúzia dos jantares de Heráclito. “Esse grupo foi fundamental”, disse. “Ajudou a ampliar o número de deputados pró-impeachment e, principalmente, aparou as arestas entre estratégias momentaneamente discordantes.”
Estrela esmagada. Pauderney Avelino, outro entusiasta do impeachment, é o líder dos Democratas. Na sala de imprensa de seu gabinete, um designer gráfico martela, no computador, uma estrela vermelha, o símbolo do PT. O artista experimenta várias formas de marteladas. A ideia é que a estrela esteja totalmente esmigalhada, e a imagem pronta para a capa do boletim diário, na hipótese de o impeachment passar. Avelino vai aos jantares desde o começo. “O Heráclito é o meu socialista predileto”, diz. “O grupo que ele montou foi muito importante no momento em que estávamos num turbilhão, e sem uma direção certa. Foi lá que o impeachment foi tomando corpo”.
“O grupo do Heráclito teve muita conversa, e pouquíssimo vazamento”, disse o ex-governador de Pernambuco e deputado de terceiro mandato Mendonça Filho, outro de seus participantes frequentes, inclusive no G-8. “Não era uma agenda de conspiração, mas uma agenda de construção do Brasil”, afirmou. “Discutiu o impeachment durante 12 meses, e foi uma bússola, sem a qual teríamos errado mais”. Das comidas memoráveis, Mendoncinha, como também é conhecido, citou a farofa, a carne de sol e o bacalhau. “Se fôssemos pagar a conta de vinho, não ia dar”, brincou.
“O Heráclito, com esse grupo, foi muito mais do que um supridor”, comentou o bom humor do deputado federal Benito Gama (PTB-BA), outro integrante do grupo, desde os primórdios. “A crise brasileira foi pauta de todos os encontros – e por aí é que achamos a solução que se avizinha, melhor para o País”.
Convidado especial. No plenário, na sexta de manhã, Gama se divertia com a piada da hora (ou do minuto): as três maiores peregrinações do mundo são a de Fátima, a de Aparecida e a do Palácio Jaburu. Este é, por enquanto, o bunker do vice-presidente Michel Temer.
Na semana que passou, o grupo de Heráclito o recepcionou duas vezes. A primeira, muito restrita, foi na terça, com 14 parlamentares presentes na casa do senador Jarbas Vasconcelos. Temer ouviu um relato e uma avaliação de como estavam as coisas. Gostou – sem arroubos.
A segunda, na quinta-feira, foi na casa da filha de Heráclito, no Lago Sul – uma espécie de reunião ampliada do núcleo de inteligência, com cerca de 80 presentes. O vice-presidente manteve a contenção. “Não queremos criar um clima de já ganhou”, disse Raul Jungmann, que lá esteve.
No café dos deputados, pela terceira ou quarta água, Heráclito Fortes disse, na quinta-feira, que apostava 99,9% que o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff seria aprovado na Câmara.
“Só um fato imponderável poderá modificar esse quadro”, afirmou. Sobre o drama político e pessoal que a presidente está vivendo, foi implacável: “Todo esse drama foi criado pelo partido dela. Nós da oposição não tivemos capacidade e competência para criar uma crise. Ela é produto da arrogância, da prepotência e da incompetência do governo. Jogaram um cesto de pedras para cima e não estão conseguindo sair de baixo”.
O Estadão